Aos 92 anos, João Cândido da Silva, pioneiro da arte de autoria negra, sonha em abrir centro cultural

Artista que integrou a 1ª Mostra Coletiva da Cultura Negra no MASP vive em casa simples e afastado do sistema da arte
O artista João Cândido da Silva (Foto: Lucas Veloso/Nonada)

São Paulo (SP) — Na periferia da zona norte de São Paulo vive um artista que faz parte da história da arte no Brasil. Não foi por acaso que João Cândido da Silva herdou o nome de um dos maiores símbolos da resistência negra brasileira. Se o Almirante Negro liderou a Revolta da Chibata em 1910, recusando o açoite imposto aos marinheiros negros, este João, mineiro, moldado entre a lida operária e a cultura popular, também liderou sua própria revolta: contra o apagamento, a humilhação, a pobreza que tentou dobrar sua arte.

Ambos João Cândido navegaram por mares revoltos. Um com o peito aberto diante dos canhões da Marinha. Outro com os olhos fundos diante das portas fechadas das galerias e dos olhares desconfiados dos que não acreditavam que um operário negro pudesse também ser artista. Se o Almirante Negro virou lenda silenciada nos livros de história, o artista João Cândido também viu sua trajetória ser ignorada por décadas, mas resiste, aos 92 anos continua a produzir.

Tintas, carnaval e política

A trajetória de João como artista plástico tem mais de cinco décadas. Sua primeira exposição individual foi em 1970, embora ele participasse de mostras coletivas desde os anos 1960. Em 1973, integrou a 1ª Mostra Coletiva da Cultura Negra no MASP – Museu de Arte de São Paulo. O Centro de Pesquisa da instituição possui documentos e registros jornalísticos que comprovam a participação de João, com obras que evidenciam o olhar atento para o cotidiano, a cultura popular e as raízes afro-brasileiras.

Entre as pinturas exibidas estavam Samba de mulheres na Casa Verde, Samba na Casa Verde I, Samba na Casa Verde II, Telhados, Lavadeiras, A feira de marreteiros, Oleiro e Pra festa de Oxalá. Ele também apresentou esculturas em madeira, como O pilão, Quituteira e Doméstica, reafirmando seu domínio técnico e sensibilidade estética em diferentes suportes.

A inspiração de João sempre veio daquilo que estava ao alcance dos olhos e da memória. “Pinto o que vejo. Vejo um telhado, pinto um telhado. Vejo um cachorro, pinto um cachorro. Vejo uma mulher lavando roupa, vou lá e pinto ela lavando roupa”, explica. Para ele, a arte nasce da observação simples do mundo ao redor — das festas de rua, dos terreiros, do vai e vem das pessoas na quebrada. “Tem muito artista que pinta com a mente, pinto com o que tô vendo, com a realidade”, resume.

Obra de João Cândido (Foto: Lucas Veloso/Nonada)

Em 1982, João expôs seu trabalho em Nápoles, na Itália, e em 1994 participou da 2ª Bienal Brasileira de Arte Naif. Os feitos são muitos, mas o reconhecimento institucional sempre foi tardio e escasso. “A gente sempre lutou muito, né? As oportunidades não vinham fácil pra gente”, lembra João.

Paralelamente às artes visuais, João se envolveu profundamente com o samba. Em 1957, foi um dos fundadores da Sociedade Esportiva Recreativa Beneficente Unidos do Parque Peruche. Também contribuiu para o carnaval de São Paulo criando, em 1976, o carro abre-alas da escola de samba Vai-Vai, que naquele ano foi vice-campeã.

A obra de João é plural. Reúne pintura, escultura, colagens e instalações, sempre com cores vivas, cenas populares e uma espiritualidade marcada pela ancestralidade negra. Seus quadros retratam caboclos, terreiros, escolas de samba e favelas. “Pintava na hora do almoço, depois do trabalho”, conta João, que exerceu por décadas a profissão de torneiro mecânico, conciliando arte e ofício com disciplina e afeto.

Assim como nomes como o artista Miguel Barros, João Cândido não caminhou sozinho. Em meio a um Brasil ainda marcado por censura e desigualdade racial profunda, sua trajetória foi impulsionada por encontros e alianças com outros nomes fundamentais da cultura negra brasileira. Entre eles, Solano Trindade, poeta, ator, artista plástico e um dos fundadores do Teatro Popular Brasileiro (TPB), teve papel central.

“Tive muito contato com Solano Trindade, ele incentivava os artistas negros, dava força. Foi uma referência pra gente naquela época”, relembra João. Fundado em 1950, o TPB tinha como missão valorizar a cultura afro-brasileira e levar peças com essa temática ao público, especialmente às camadas populares. Mais do que palco, o teatro era trincheira.

Essa rede de resistência se expandia para fora dos centros culturais. João Cândido foi um dos precursores da tradicional Feira de Artes da Praça da República, no centro de São Paulo, entre 1960 e 1980. Ao lado de outros artistas negros e periféricos, ocupava o espaço público com pinturas e esculturas carregadas de memória e crítica social, em uma época em que as portas das galerias ainda estavam majoritariamente fechadas para criadores como ele.

Obra de João Cândido (Foto: Lucas Veloso/Nonada)

Foi justamente ali, na praça, que o artista foi notado por representantes do MASP, o que lhe garantiu participação na 1ª Mostra Coletiva da Cultura Negra, no museu. Como muitos de sua geração, João construiu sua trajetória à margem do circuito institucional, mas em forte conexão com redes de artistas, intelectuais e ativistas que viam na arte uma forma de luta e afirmação.

Para a curadora, pesquisadora de Arte Africana Tradicional e Mestre em Artes Visuais, Maria Cecília Felix Calaça, João ocupa um lugar fundamental na história da arte afro-brasileira. “Sua produção, marcada pelo colorido intenso e pela escultura de talha genuína é comprometida com as manifestações culturais da sua comunidade como rodas e escolas de samba, serestas dançantes, cenários dos morros, pilões e grupos escultóricos”, indica. 

“Falta mais reconhecimento e homenagens ao seu João”, completa Guilherme Soares Dias, do Guia Negro, ⁠plataforma que organiza roteiros para destacar as contribuições da população negra no país. “Precisamos apoiá-lo agora para que seu ateliê se torne um espaço mais conhecido, visitado e difundido por todos”. 

Infância operária, casa de artistas

Foto: Lucas Veloso/Nonada

João Cândido da Silva nasceu em Campo Belo, Minas Gerais, em uma família numerosa: era um dos 18 filhos de dona Maria, mulher negra, bordadeira, autodidata e artista plástica. Ainda pequeno, mudou-se com os pais e irmãos para a cidade de São Paulo, onde cresceu em meio às adversidades da periferia, no bairro da Casa Verde, zona norte da capital. 

A trajetória de João se entrelaça à história dos migrantes mineiros que chegaram à metrópole em busca de melhores condições de vida. Seu pai trabalhava como operário e, desde cedo, ele também precisou dividir o tempo entre os estudos e o trabalho para ajudar em casa.

Apesar das dificuldades, o ambiente doméstico era permeado por expressões culturais. A casa da família Silva não era chamada de “ateliê”, mas já funcionava como tal, um lugar de criação, de bordado, de pintura, de música, de conversas e festas. A arte não era um luxo, mas uma forma de estar no mundo.

Entre os irmãos, o destaque vai para Maria Auxiliadora da Silva, que hoje é reconhecida como um dos grandes nomes da arte popular brasileira. Assim como João, Maria era autodidata e começou a pintar com os materiais que encontrava à mão, como papelão, tecido, o que estivesse disponível. Sua obra, marcada por cenas do cotidiano negro e periférico, fé e religiosidade, conquistou reconhecimento internacional mesmo após sua morte precoce, aos 39 anos. A trajetória dela, embora breve, ecoa até hoje em museus, estudos e exposições sobre arte afro-brasileira.

João lembra com carinho e admiração da irmã. “Ela era uma grande artista. Eu a levava nas exposições, ela tinha um talento enorme. Era minha irmã querida.” Os dois compartilhavam a prática artística como extensão da vida: pintar era contar história, preservar memória e dar forma ao invisível.

A formação de João, no entanto, não foi apenas artística. Como muitos jovens negros e pobres da época, ele teve que trabalhar desde cedo em ofícios diversos, foi ajudante de pedreiro, balconista, operário, até conquistar certa estabilidade para dedicar-se às artes plásticas. Mesmo assim, nunca parou de pintar e desenhar. A vida no bairro, a religiosidade, o samba, os carnavais, os vizinhos e as transformações da cidade são temas que atravessam sua vasta produção.

O silêncio que pesa sobre um nome

Ao contrário do que se possa imaginar ao ouvir sobre uma trajetória tão extensa e relevante quanto a de João, destacada por exposições no Brasil e no exterior, prêmios, fundação de escola de samba e contribuições para a arte negra brasileira, a vida dele não é cercada de conforto ou reconhecimento proporcional, uma questão ainda enfrentada por muitos nomes da arte afro-brasileira e da arte popular.

Aos 92 anos, ele vive em uma casa simples, em um cotidiano que se assemelha ao de um aposentado. Seu ateliê, construído aos poucos com as próprias mãos, é também sua morada e o principal símbolo de resistência e criação que ergueu ao longo da vida. Mesmo que tenha um legado artístico incontestável, João ainda enfrenta o descaso e a invisibilidade que o sistema frequentemente impõe aos artistas negros no Brasil.

João Cândido e sua filha, Luanda (Foto: Lucas Veloso/Nonada)

A filha do artista, e sua principal ajudante, Luanda da Silva, aponta o preconceito racial como principal responsável pelo silenciamento da trajetória do pai. “O racismo nunca deixou de ser uma presença constante, apenas mudou de formas. Antes, eram portas fechadas. Hoje, são silêncios estratégicos, convites que nunca chegam e olhares que deslegitimam sua trajetória, apesar da grandiosidade da sua obra”, afirma. Aos 92 anos, João ainda precisa reafirmar seu valor. “Isso às vezes o deixa muito cansado, mesmo com décadas de contribuição à cultura brasileira. Isso diz muito sobre o Brasil que seguimos construindo”, completa. 

Luanda também denuncia como a lógica do mercado costuma só valorizar artistas negros quando encaixam em estéticas palatáveis ou após a morte. “Meu pai nunca se curvou a isso. Ele segue fiel à sua linguagem e por isso, foi ignorado muitas vezes. Essa exclusão revela não só o racismo institucional, mas também a urgência de valorizarmos trajetórias como a dele enquanto essas vozes ainda estão entre nós”. 

O ateliê e o sonho de um centro cultural

Há 85 anos, João vive na mesma casa na zona norte paulistana em que cresceu. Ali, criou filhos, netos, e construiu, literalmente, seu ateliê. O espaço abriga dezenas de obras, arquivos e documentos históricos. “Quero que esse ateliê vire um centro cultural”, afirma o artista. O projeto é simples e poderoso: abrir as portas de seu espaço para estudantes, pesquisadores e moradores da região. “A arte tem que circular, tem que chegar nas crianças”, indica.

O atelier de João Cândido (Foto: Lucas Veloso/Nonada)

Uma prova da importância do artista é que sua residência também virou parada obrigatória nos roteiros de afro-turismo. “A casa dele faz parte das visitas à Casa Verde, um percurso que a gente faz de van pelo bairro, contando um pouco da negritude”, explica o jornalista Guilherme Soares Dias, do Guia Negro. “Ele é super acolhedor, adora bater papo e receber as pessoas. É um ótimo ponto de encontro, comenta. 

Guilherme lembra que o artista encanta as crianças. “A gente fez esse passeio com crianças de 7 anos. Quando perguntaram quantos anos ele tinha e ouviram ‘91’, ficaram impressionadas com a lucidez e fizeram perguntas perspicazes. É impressionante como ele cativa qualquer visitante”. 

Para viabilizar essa transformação, sem apoio do poder público, a família, junto com um grupo de artistas e educadores, lançou uma campanha de financiamento coletivo, já encerrada. A ‘vaquinha’ teve como foco mobilizar a comunidade para apoiar a consolidação do espaço como centro cultural acessível e inclusivo, aberto ao público, com oficinas e cursos de arte, exposições de artistas locais e emergentes, além de eventos. Agora, o artista segue buscando novos recursos.

Compartilhe
Mais sobre →

Relacionadas