“É como disse a liderança indígena Alessandra Munduruku: ‘Se vai ser aqui e não é sobre nós, quando que vai ser?’”, relembra o universitário paraense Rui Gemaque, que integra o coletivo Observatório das Baixadas, ao falar sobre a COP30. Rui também se recorda do que comumente é dito sobre as conferências do clima, de que “apesar de serem realizadas em lugares específicos, elas não necessariamente têm a ver com esses lugares”. Esse desencontro entre discussões e território se dá, em grande parte, pela ausência da participação ativa das comunidades desses territórios nos debates e nas tomadas de decisões realizadas no evento.
Desde que foi anunciada, ainda em 2023, a COP30 tem sido alvo de diversos questionamentos envolvendo a ausência de participação indígena e de comunidades das periferias nas discussões centrais sobre tomadas de decisões. A conferência é um momento estratégico para pautar as demandas de comunidades impactadas pela crise climática e por desastres ambientais. Por se tratar de um espaço de negociações entre diferentes países, cujos acordos já vinham se desenvolvendo ao longo dos anos e em conferências anteriores, trazer à tona os debates que acontecem longe do que se convenciona como centro é indispensável.
O Observatório das Baixadas, formado por jovens universitários ou graduados periféricos, é um dentre os diversos coletivos que estão se preparando para pautar assuntos locais na COP30. A iniciativa é resultado de uma união de ideias entre a Coalizão COP das Baixadas, de Belém, e a Perifa Connection, do Rio de Janeiro. Mas antes mesmo que comece a conferência, o coletivo já trabalha com maneiras de fortalecer, dentro dos territórios, as discussões sobre as realidades ambientais e climáticas que imperam nas baixadas, que são as áreas mais sensíveis aos eventos extremos.

A atuação do coletivo ocorre em quatro frentes diferentes: por meio da disputa de narrativas dentro de espaços de poder por melhores políticas públicas; do desenvolvimento de pesquisas que permitem compreender a realidade das baixadas; do desenvolvimento de tecnologias que contribua com as vivências do território; e da co-criação comunitária através de ações realizadas. “O nosso objetivo é produzir pesquisa, fazer ciência com a comunidade e para a comunidade, com jovens periféricos. O que nós queremos é tomar posição dentro de certos lugares estratégicos para conseguir fazer essa articulação, trazendo a perspectiva de crianças, jovens e de pessoas da terceira idade.”
Por uma terceira via nas periferias
A presença das comunidades nas mesas de discussões da conferência é imprescindível. Mas Rui acredita que, nessa COP, diferente de outras, muitas coisas irão acontecer “do lado de fora”, vide a ocupação indígena que aconteceu no início do ano na Secretaria de Educação do Pará, pela revogação da lei que precarizaria o ensino para comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas em regiões remotas do estado.
“Os movimentos sociais estão muito mais aflorados. A gente já escuta murmúrios de planejamentos de marchas e manifestações que irão ocorrer antes, durante e depois da COP”, diz. Para Rui, o fortalecimento dos territórios enquanto detentores das próprias narrativas e do debate público é o legado mais importante da conferência, já que reconhece que a COP não irá resolver os problemas das baixadas, mas sim servir “como um marco, como um ponto estratégico para essas movimentações”.
Como meio de aproximar as discussões locais da COP, o Observatório propõe de forma inédita as chamadas yellow zones, ou zonas amarelas. Nas conferências do clima, existem as blue zones, que são restritas a representantes das nações e credenciados e correspondem às áreas onde ocorrem negociações oficiais, reuniões de grupo de trabalho e sessões plenárias; e as green zones, que são abertas ao público e são destinadas a eventos não-oficiais, com exposições, workshops e atividades que envolvem ONGs, empresas e instituições acadêmicas.
Já as yellow zones atuariam enquanto pontos de cultura e de resiliência comunitária, áreas onde a comunidade poderia se reunir para fazer o debate climático dentro do próprio território. “A gente lança uma terceira via por meio da periferia mesmo”, explica Rui.
Farinha pouca, meu pirão primeiro
“Engana-se quem pensa que a COP30 vai ser um espaço aberto para todo mundo participar”, diz o jornalista e produtor cultural Matheus Botelho, integrante do coletivo Na Cuia. Ele explica que a presença de organizações e a participação social ocorre através de credenciais específicas, mas que as credenciais cedidas a jornalistas e organizações como a Na Cuia são algumas das que menos dão acesso a espaços tão importantes quanto aqueles em que são autorizados. Há dez anos atuando na comunicação popular, o coletivo percebe a realização da conferência em Belém para além de seus benefícios, reconhecendo seus impactos nas vivências das comunidades locais.

“A COP acontecer no Brasil, na Amazônia, em Belém do Pará traz uma oportunidade de espaço e visibilidade para a gente. Mas não só isso, ela também traz diversos malefícios, principalmente por conta da forma como o próprio governo local se utilizou dessa pauta para publicizar e incitar a população ao lugar de venda, de autovalorização e de precarização da economia local. A proposta é fortalecer, mas acaba no ditado: farinha pouca, meu pirão primeiro”, diz o jornalista.
O coletivo pauta a democratização da comunicação e da cultura popular como forma de sensibilização do enfrentamento à crise climática, ao racismo ambiental e às desigualdades sociais. “Não dá para pensar justiça climática sem justiça social, racial e sem justiça cultural”, defende Matheus.
O Na Cuia também trata do avanço das big techs sobre os cursos tomados pelo debate público, fragilizando a formação de redes culturais no ambiente virtual por meio da manipulação do consumo através de algoritmos, impedindo a construção de um espaço digital saudável. “Tudo isso está atrelado à democratização da comunicação, está atrelado à sensibilização da população para entender o que é uma crise climática e o que é uma COP”, diz Matheus.
A participação da comunidade LGBTQIAP+ e a pauta de gênero e clima é outra agenda com a qual o coletivo trabalha e que pretende levar como discussão para a conferência. “Essas vivências precisam ser consideradas nos acordos finais, na hora de pensar a adaptação climática, a mitigação dos impactos da crise climática, na hora de considerar o financiamento climático para esse território”, diz o jornalista.
Para Matheus, o reflorestamento não é o bastante para remediar a crise. Segundo ele, diversos projetos sociais e ambientais, a partir do acesso ao financiamento, conseguem impactar e melhorar as vidas das populações desses territórios a partir da cultura e da comunicação popular. Um exemplo desses projetos é organizado pela própria associação cultural, como o programa de formação intitulado Comitê de comunicadores populares das baixadas de Belém. Centrado em temáticas ambientais de justiça climática e crise ambiental em interface com a comunicação, o objetivo do programa é fortalecer a articulação das populações da região e descentralizar esses programas de formação dos profissionais da grande imprensa, valorizando a comunicação popular.
Conheça coletivos culturais que se articulam a partir de realidades locais e se preparam para a COP 30:
Carta Amazônia
Agência de comunicação que atua por meio de podcast, notícias e do curso de formação Escola Carta Amazônia de Jornalismo Socioambiental na produção de conteúdos e serviços pautados nas agendas socioambiental, de Direitos Humanos e de Justiça Climática. Gerida por jornalistas paraenses, a Carta acompanha desdobramentos políticos relacionados aos povos tradicionais da Amazônia e comunidades locais, evidenciando lutas comunitárias e descaso da gestão pública. Segundo denunciou em reportagem recente, 10% da população de Belém, cidade sede da COP 30, vive em regiões de risco hidrogeológico (alagamentos, inundações, deslizamentos e erosão) por conta do crescimento urbano desordenado, consequência do pacote de obras executado pelo governo do estado.
Gueto Hub
Autointitulado como uma biblioteca de artes e saberes, o coletivo Gueto Hub atua promovendo cultura e informação sobre o meio ambiente através de projetos locais, como a ação Consciência climática para sustentar nosso futuro. A sede do coletivo, um pequeno sobrado que se destaca pela sua cor lilás, situada em Belém, funciona como ponto de encontro para debates e programações culturais. A pesquisa sobre os gastos do Brasil com defesa nacional, que são maiores que os gastos com gestão ambiental, foi uma das pautas recentes trazidas pelo coletivo em suas redes.
Tapajós de Fato
Veículo de comunicação popular, alternativa e independente da região Oeste do Pará, segundo autodefinição. Buscando ser um espaço para ecoar as vozes das populações silenciadas e invisibilizadas pelo sistema e nos meios de comunicação de massa na Amazônia, ao longo desses anos de atuação sendo um veículo de informação, o Tapajós de Fato também acumula uma vasta experiência através da educação popular. O futuro da juventude dos povos do Tapajós frente ao PL da devastação (Projeto de Lei 2.159/2021), que pretende simplificar e unificar licenciamentos ambientais no Brasil, aumentando as chances de degradação ambiental, é assunto de reportagem recente.
Coletivo Jovem Tapajônico
Coletivo formado por juventude que multiplica informações e formações políticas, ambientais, de gênero, sexualidade, de território e cultura nas comunidades ribeirinhas do Rio Tapajós. No Instagram, o coletivo compartilha, em conjunto com outras entidades socioambientais, iniciativas de proteção e de conscientização sobre o meio ambiente e das lutas dos povos tradicionais, como a ocupação indígena na Secretaria de Educação do Estado no início do ano, em Belém, cuja força revogou a Lei Nº 10.820. A lei instituía o ensino remoto para comunidades indígenas e ribeirinhas em áreas remotas do estado, precarizando a educação. A Pré-COP 30 da juventude da floresta, que debateu questões dos territórios indígenas e que defende que a juventude é instrumento de transformação, foi destaque recente na cobertura do coletivo.
Na Cuia
Há mais de dez anos atuando com comunicação popular por meio da democratização da comunicação em Belém e região metropolitana e região amazônica, a associação cultural Na Cuia, como o próprio nome diz, também desempenha atividades de produção cultural. O coletivo tem como missão enfrentar o racismo ambiental, a exclusão digital, a desinformação e o monopólio de oligarquias na comunicação. No mais recente projeto, o Comitê de Comunicadores Populares das Baixadas de Belém, o coletivo promove o encontro de ideias e territórios para ecoar vozes das baixadas, uma forma de fortalecer a articulação local e a organização popular. Para o coletivo, além da presença nos espaços da COP, é importante estreitar a relação da mídia com as populações como forma de amplificar a atuação e as narrativas dos próprios territórios, uma vez que esses lugares são os primeiros a vivenciar os impactos da crise climática.
Comitê COP 30
Coalizão da sociedade civil brasileira que pretende fortalecer a incidência das organizações da América Latina, para uma COP30 centrada em uma perspectiva socioambiental. A coalizão é composta por organizações como o veículo Tapajós de Fato, o Instituto Mapinguari e o Comitê Chico Mendes. A coalizão entende que há uma pluralidade de frentes de atuação e de lugares que precisam ser ocupados, valorizando uma diversidade de pontos de vista. Em seu site, o Comitê divulga artigos e cobertura de sua participação em conferências sobre o meio ambiente.
Observatório das Baixadas
Composto por jovens cientistas periféricos de todo o Brasil, o coletivo trata das questões climáticas sob a perspectiva das baixadas. Conforme explica o coletivo, o termo baixada deriva do gênero tipológico das Periferias e se refere a comunidades em estado de vulnerabilidade. As baixadas “contam com um elemento geográfico / geomorfológico bem característico: os terrenos baixos, suscetíveis a desastres climáticos e ambientais geo-hidrológicos – os mais destrutivos no Brasil”. Por esse motivo, esses territórios são os mais impactados por desastres climáticos. O coletivo se dedica a discutir e implementar, através de pesquisa e tecnologia, soluções para o contexto de crise climática dentro das comunidades de baixada. “O observatório tem a função de inverter a lógica de que nas baixadas não há ciência, e de que sua população não está devidamente preparada para questionar a falta de políticas públicas adequadas para seus territórios”, diz o Observatório.